sexta-feira, 19 de abril de 2024

A DOENÇA QUE ALTEROU O CURSO DA HISTÓRIA. - V


                                                   Religiosos disseminaram a doença



No começo do século XIII  missionários de uma seita chamada " Nestoriana " - que, entre outros preceitos estranhos, dizia que Cristo tinha dois rostos (?) - começaram a percorrer os novos caminhos entre a Europa e a Ásia. Acabaram por descobrir, ao longo desses caminhos, sepulturas de missionários datadas de 1338 e 1339, alguns dos quais pereceram de peste contraída na Mongólia.
Crê-se que a contaminação desses viajantes, conjugada com a existência da ratazana vulgar na Europa - notadamente a partir do século XVII - foi a principal causa da  "morte negra" que assolou o continente europeu nos 60 anos seguintes e continuou a aterrorizar o mundo durante quase 4 séculos. A expressão " peste negra ", criada no século XIV, tem sua origem na utilização da palavra " negra ", do latim medieval, com o significado de " terrível ". No ano de 1348, em
Florença, morreram cerca de 1 000 000 de pessoas. O papa Clemente VI, que então residia em Avinhão, propos uma peregrinação à Roma. Nessa viagem, de mais ou menos 800 km,
partiram mais de 1 000 000 de peregrinos, dos quais só retornaram 100 000!
No auge da epidemia, o rio Ródano foi usado como cemitério para as vítimas pois, pelo grande número, se tornava impossível sepultar.
Lá pelo final do século XIV, a peste já vitimara cerca de 25 000 000 de pessoas - a quarta parte da população mundial conhecida à época!

continua...

Um grande abraço e ótimo final de semana.

Clóvis de Guarajuba
ONG Ande & Limpe

sexta-feira, 12 de abril de 2024

A DOENÇA QUE ALTEROU O CURSO DA HISTÓRIA. - IV


                                                     Lesões causadas pela peste



A peste mais devastadora que o mundo conheceu, começou a disseminar-se a partir do Egito, no ano LIV de nossa era. Acompanhando as grandes rotas comerciais de então, atravessou a
Ásia Menor atingindo Constantinopla, a Itália e a Grécia, chegando até ao Reno. Em 52 anos a doença dizimou a população, calculando-se que tenham morrido 100.000.000 de pessoas, o que significava uma importante parte da população do mundo então conhecido.
Com o declínio do Império Romano e a consequente interrupção das rotas comerciais, a peste foi praticamente esquecida durante 8 séculos. Embora a doença, aparentemente tenha sido esquecida, há uma descrição da enfermidade na obra  " Crônica Anglo- Saxônica ", escrita pelo venerável Beda, que acredita-se seja o retrato de um bulbão. Dessa maneira, a peste pode ter feito muitas vítimas durante o ano de 664, na Inglaterra e na Irlanda. Além da descrição de
manchas pelo corpo, identificadas como o principal sintoma aparente da doença, o autor se refere a uma " grande pestilência ", caracterizando com essa expressão, o fácil e rápido contágio.

continua...

Um ótimo final de semana a todos.
Abraço.

Clóvis de Guarajuba
ONG Ande & Limpe

sexta-feira, 5 de abril de 2024

A DOENÇA QUE ALTEROU O CURSO DA HISTÓRIA. III


                                                         Tratando dos doentes
                                       muitos desses tratadores contraiam a doença



Há duas espécies principais da peste: a bubônica e a pneumônica. Quando o indivíduo é picado por uma mosca que transporte a bactéria da doença, colhida num roedor infetado, aparecem  uns inchaços ou bubões, no local da picada, nas axilas ou nas virilhas os quais justificam o nome " peste bubônica ". Já a peste pneumônica é contraída pela respiração quando em contato com um roedor infetado, se inspira a bactéria. Após essa fase, a transmissão se dá de pessoa para pessoa através da respiração. Durante uma epidemia ou pandemia - como as grandes epidemias são denominadas - pode ser infetada uma percentagem de 90% da população local, se não
forem tomadas medidas drásticas de higiene e controle. Dos que contraiam a peste bubônica, até há poucas décadas, 60 a 80% morriam. Já na peste pneumônica era superior a 99% e as vezes
não havia sobrevivente na região. Desde as mais remotas eras, o homem parece ter sido atacado por epidemias de peste. Há registros arqueológicos que indicam a presença de uma epidemia da peste, na Babilônia, no ano de 3000 a.C. que, de tão violenta e letal, foi denominada com o nome de um demônio: Mamtar. Pode-se dizer que a peste, que vitimou centenas de milhões de indivíduos, alterou o curso da história...

continua...

Abraços aos meus amigos e um ótimo final de semana a todos.

Clóvis de Guarajuba
ONG Ande & Limpe

sexta-feira, 29 de março de 2024

A DOENÇA QUE ALTEROU O CURSO DA HISTÓRIA. II


                               Recolhendo os mortos.



 Graças ao extraordinário aumento no preço da pele das marmotas, milhares de chineses e mongóis se deslocaram para a região de caça, na Manchuria do Norte, pensando ganhar muito dinheiro de maneira rápida e não muito trabalhosa. O trabalho era ainda mais fácil quando encontravam um animal doente e por isso mesmo, sem forças para fugir. Consumiam, por falta de conhecimento, até aquela " gordura de sob o baço dos animais ", que, embora deliciosa, era justamente onde a doença atacava as vitimas, contaminando a maioria dos seus consumidores. Sem nenhuma precaução no sentido de evitar a transmissão da bactéria, a peste migrou, junto com os caçadores, das áreas de caça para a cidade de Manchuli, ponto final da estrada
de ferro oriental da china. Pronto, estava criado o ambiente ideal para a propagação da doença pelos 2.700 km da linha férrea, matando dezena de milhares de pessoas. Tudo se agravou quando as pessoas contaminadas eram tratadas como pacientes portadores de doenças comuns e, por isso mesmo, sem nenhuma precaução quanto ao possível contágio. Assim, uma bactéria que mal excede um milésimo de milímetro, causou uma enorme baixa no número de habitantes das regiões  atingidas.  
A peste não é, habitualmente,  uma doença humana, mas de roedores e é transmitida pelas moscas, de um para outro animal.
 Há duas  espécies principais da doença...
mas isto é assunto para a próxima postagem...


continua...

Um ótimo final de semana a todos.

Abraço e obrigado pela visita.

Clóvis de Guarajuba
ONG Ande & Limpe

sexta-feira, 22 de março de 2024

A DOENÇA QUE ALTEROU O CURSO DA HISTÓRIA. - I



                                                                Doentes terminais



Como quase sempre acontece, foi a ganância dos homens que ocasionou a última grande epidemia de peste bubônica ocorrida no leste da Sibéria no inicio da década de 1910.
A doença matou, em apenas sete meses, mais de 60.000 pessoas!
Tudo começou com o aumento do preço - quase 400% - da pele das marmotas.
Estes animais roedores, cuja pele substituía com vantagens a pele de um outro animal, chamado marta zibelina, sempre foram caçados pelos Mongóis que conheciam a fundo  seus hábitos e a estranha doença que por vezes os atacava. Nenhum mongol caçaria um animal doente e, embora a carne e a gordura do animal, fossem de um sabor muito  agradável, havia a proibição local de se consumir um tecido gorduroso de sob o baço - na verdade uma glândula linfática auxiliar  que, segundo a lenda, continha a alma de um caçador morto. Os mongóis sabiam que esta glândula era atacada diretamente  quando o animal adoecia, infetando quem a comesse e levando os circunstantes a  abandonar o doente à sua própria sorte, para não serem contaminados; doente este que, quase invariavelmente, viria a óbito, em circunstâncias  terrivelmente doloridas e cruéis.


continua...

Abraço a todos e um ótimo final de semana.

Clóvis de Guarajuba
ONG Ande & Limpe

sexta-feira, 15 de março de 2024

- MIOLO DE PÃO - final -





" Depois de navegar quanto bem quis, tendo os pés como *palhetas, Miolo de Pão procurou o barraco do bêbado, mas não o localizou entre tantos barracos da invasão do Riacho Doce.
Miolo de Pão se acordou de madrugadinha pelo barulho que sacudia a cidade. Era como se a cidade toda estivesse caminhando de pés descalços. Vozes se multiplicavam a todo instante. Brinquedos de miriti passavam suspensos em enormes cruzetas. Pessoas vestidas de camisolões brancos passavam apressadas para o centro urbano. O que estava acontecendo?
O pato po barraco do bêbado, mas não o localizou entre tantos barracos da invasão do Riacho Doce.
O at procurou explicações nas águas do Tucunduba. Quando lá chegou, já estavam cheias de pessoas, umas tomando banho com baldes, outras nadando no meio das águas.
Miolo de Pão compreendeu que já estava bastante atrasado em sua programação.
Antes tentou entrar no primeiro barraco que encontrou. Colocou o bico dentro da casa procurando sentir os cheiros que vinham da cozinha. Como os moradores eram tão pobres que não tinham dinheiro para comprar pão, de lá não chegava nenhum cheiro de miolo.
E o pato foi gingando à procura de outras portas.
Na terceira, de lá pra cá, de cuja cozinha não vinha cheiro de nenhuma espécie, alguém chamou o animal, carinhosamente, talvez pensando no almoço do dia. Miolo de Pão tratou de andar ligeiro e levantou voo à procura das águas do Tucunduba.
Enquanto se ouvia, ao longe, o espocar dos fogos de artifício, saiu um pequeno batalhão de menores, dos duzentos mil que habitam Belém em absoluta miséria, à procura de completar a "meia comida e meia escola".
Rita avistou da porta da sua casa o João Felício, que ia passando de pés descalços para acompanhar o Círio.
- Bom dia, seu João!
- Bom dia, Dona Rita.
- Não vai acompanhar o Círio? - João quis saber.
- Vou. Vamos eu e o Dagoberto.
- O senhor ainda trabalha no barco "Rodrigues Alves"? - perguntou Rita.
- Ainda, dona Rita.
- Ele continua fazendo viagem pra Cametá?
- Continua.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou João Felício.
- O Dagoberto, ontem à noite, trouxe um pato grande...mas eu já tinha comprado um para o Círio. Vai acabar se perdendo no Tucunduba. Fiquei pensando: será que o senhor não levava pra vender no barco?
- Levo, sim. Em Cametá, tem um bom criador de patos, talvez ele compre pra revender.
Pergunta Rita:
- Como é o nome dele?
- Edgar. Vou vender pra ele.
- Eu lhe dou uma comissãozinha. E se virando para dentro de casa:
- Vai pegar o animal, Dagoberto!
Dagoberto desceu da casa, com as mãos cheias de miolo de pão, para atrair o pato ".


palhetas - tem o significado de " hélices ", sentido muito comum no linguajar da região.

Um ótimo final de semana a todos. Obrigado pelas visita.
Abraço,


Clóvis de Guarajuba
ONG And&Limpe

sexta-feira, 8 de março de 2024

- MIOLO DE PÃO - IX -



Dagoberto tem dúvidas: não 
sabe se acompanha a Transladação ou se vai para o Riacho Doce.
Chama a atendente.
Um homem passa, carregado de 
bolas gigantescas. Um menino puxa o pai pela mão, para comprar a bola de tantas cores. Os brinquedos estão espalhados pelo chão, protegidos por jornais velhos. 
Uma menina  caminha em sentido 
contrário, brincando com um 
reco-reco. O barulho desperta o 
pato. O homem levanta-se.. Olha para o pato dentro do paneiro.. 
Fala alto:
 -Véspera do Círio. Que Nossa Senhora de Nazaré nos 
proteja! E, curvando-se para pegar paneiro: 
-Vamos embora, imbecil!
Depois que Dagoberto deu algumas marretadas na porta, Rita foi atender:
- Só agora? - perguntou.
E Dagoberto:
- Fui atrás de pato!
E tratou de abrir a boca do paneiro. Ficou surpreso porque a boca já estava praticamente aberta.
- Olha que beleza! - exclamou.
Rita não concordou muito:
- Pra quê?
- Pro Círio.
- Já comprei o pato pro Círio. Você acha que eu ia esperar até agora?
Dagoberto sentiu cheiro de maniçoba.
- Então vamos comer na próxima semana - sugeriu.
- Pato só é bom no dia do Círio - disse Rita.
- Então coloca no terreiro!
- Que terreiro, homem? Só se for no igarapé do Tucunduba!
O homem caiu em sí e olhou o universitário igarapé. Sem nada dizer, 
concordou com a mulher.
- É um pato grande e bonito!
Lembrou a pessimista:
- Vai quebrar toda a louça se ficar em casa...
Farto de tanto recolhimento, o patarrão deu duas descarregadas no chão da casa de Rita, e se dirigiu para o tanque que estava cheio de água.
- Não é o que digo?
Dagoberto coçou a cabeça


Rita se aproximou, pegou 
o pato pelas asas e o sacudiu 
no Tucunduba. O voo curto 
da ave terminou nas águas que banham cinco bairros, que estavam mansas e apaziguadas pelas horas que eram.
- Só resta dormir! - falou 
Dagoberto ao armar a rede ".






Continua na próxima postagem...

Bom final de semana a todos.
Abraço,


Clóvis de Guarajuba
ONG Ande & Limpe

sexta-feira, 1 de março de 2024

- MIOLO DE PÃO - VIII -


Rio Tucunduba - Belém

" Indiferente, inchado de tanta poluição, o Tucunduba nada respondia, no seu longo deslizar pelos cinco bairros da cidade de Belém, desde Jabatiteua, MarcoCanudos, Terra Firme e Guamá. Apesar de sua doença poder ser identificada pelo material que é despejado pelas indústrias situadas às margens, além do lixo 
doméstico e fezes humanas, o Tucunduba é um pequeno igarapé bonito. 
Na travessia que faz pelos bairros pobres de Belém, carrega consigo questões de toda sorte, para treze-las finalmente ao campus universitário.
Quanto mais fechada ficava a cara da Rita, a mulher do bêbado, falando contra o Tucunduba, Dagoberto dizia a brincar:
- Não existe lugar melhor, mulher! Não existe igarapé mais sábio no mundo. Ele atravessa o campus da universidade e, se um dia ele transbordar, leva o Riacho Doce e tudo o mais!
- A professora Vera disse que vai transbordar, Dagoberto. Só uma dragagem salva o igarapé. Quem vai se preocupar com seus moradores?
Sem se incomodar com as brigas e com o lazer das crianças pobres, o Tucunduba vai rolando ao longo de sua extensão e de uma população de mais de duzentas mil pessoas.


Alegre ficava pelo fluxo de água 
trazido pelo rio Guamá e alguma 
vegetação mais resistente. Dádiva 
dos deuses a sustentar o resto de 
oxigênio que ainda existe.
Por isso é que o Tucunduba
ansiosamente, como que abre sua 
boca pra receber o que o rio Guamá manda em solidariedade. Infeliz do peixe menor que, ao fugir do 
maior, entra através do Guamá
Não resiste. Foi assim que 
aconteceu com aquele imenso peixe de pele lisa que entrou no 
Tucunduba, em dia de maré alta. 
A principio assombrou os meninos 
com seus mergulhos e artimanhas. 
Os que tomavam banho no igarapé 
ficaram apreensivos. Pensavam que era um monstro que estava aparecendo no Tucundubanas noites de lua cheia. Porque era nas noites de lua cheia que o luar tirava reflexos de sua barriga branca. Não foi longe o peixe. Morreu no campus 
universitário, à míngua  de tratamento".

Obs: O peixe referido no texto seria um "Filhote", abundante nos rios da Amazôniaque tem a pele lisa, a barriga branca e pode pesar até 200 kg.

Continua na próxima postagem...

Bom final de semana a todos.
Abraço,

Clóvis de Guarajuba
ONG Ande & Limpe

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

- MIOLO DE PÃO - VII -





" Como a massa às vezes ficava redonda como uma bola, o pato nunca tinha visto um miolo de pão tão grande, por isso saiu andando às pressas, um passo lá e outro cá, e voou em cima da massa de pasteis às bicadas. A vendedora quase desmaiou com a inesperada e violenta agressão, enquanto o pato saboreava o que podia, ao
mesmo tempo que aproveitou para uma descarregada pelo traseiro..
Enquanto o barraqueiro vizinho tentava ajudar a vendedora, o pato, saciada a fome, desceu e voltou para o seu lugar primitivo. O bêbado nada percebeu e, pelo excesso de cerveja, dava cabeçadas no vazio o sono chegando aos poucos.
Embora entre uma cabeçada e outra no vazio a Transladação tenha passado, o homem ainda via os repetidos fogos de artifício, e ouvia, compassado e agradável, o badalar dos sinos da Basílica de Nossa Senhora de Nazaré.
Quis chamar a garçonete, mas seu gesto se perdeu naquele aglomerado de pessoas..  " Pagar a conta e ir pra casa ", pensou. Olhou para o pato que já estava quieto dentro do paneiro. Pensou mais ainda. Não tinha coragem de enfrentar sua mulher, em casa. Desde setembro de mil novecentos e noventa, com as primeiras
levas dos dez mil invasores, chegara às margens do igarapé do TucundubaParticipara da invasão Riacho Doce. Todos diziam que era doce o Tucundubaque hoje  é uma sujeira de meter medo. 
A mulher era por demais rabugenta, burra e pessimista. Vivia a falar contra o Tucunduba.
- Ele vai transbordar! Quem falou foi a doutora Vera, e, quando
transbordar, vai levar todas as nossas casas...
Ao lado do sanitário ficava a cozinha, e a mulher jogava uma lata amarrada por uma corda para puxar água. Quando estava para discutir, o bêbado dizia:
- Poluído nada! As crianças andam de canoa e tomam banho.
Dagoberto era o bêbado. Esperava todas as tardes que, pelo menos uma vez só, a mulher chamasse carinhosamente pelas duas primeiras sílabas do seu nome, acrescentando um assento agudo ou circunflexo, para ele melhor olhar a vida. Quando amanhecia e via a mulher olhando o igarapé passar, segurando o balde para puxar água, costumava  brincar alegremente. Olhava o igarapé e dizia:
- Bom dia, Flor do dia! "

Continua na próxima postagem...

Desejo a todos os meus amigos um excelente fim de semana.
Abraço,


Clóvis de Guarajuba
ONG Ande & Limpe

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

- MIOLO DE PÃO - VI -





" O homem falava consigo mesmo:
- Boca seca. Faz tempo que não bebo!
A brisa vespertina da baía de Guajará já tinha invadido a cidade e o clima estava ameno, por isso o homem foi caminhando. Ao aproximar-se da união da Braz de Aguiar com a Generalíssimo, viu as luzes do Largo de Nazaré, porque a noite tinha chegado e a resistência da tarde era tênue por dois ou três borrões de vermelho no horizonte.
Sentou-se à mesa do Largo, situado à frente do colégio Barão do Rio Branco e pediu:
- Cerveja!
À primeira garrafa seguiram-se tantas outras que, depois de algum  tempo, a própria mesa já era uma festa. Ficou alegre, dizia gracejos às garçonetes.
Ouviu tantos fogos de artifício, e viu tantas pessoas que iam em procissão lá na outra extremidade, que perguntou a um casal que passava:
- O Círio agora é à noite?
E o homem que passava fechou a cara:
- É a Transladação, herege!
Chamou a garçonete:
- Mais uma cerveja!
O pato é que não achava jeito para dormir com tantos fogos e tanto barulho.
O instinto lhe dizia que era hora de dormir, porque assim acontecia no quintal da Neuzita, em Cametá: quando a noite vinha chegando as criações do Edgar se acomodavam para dormir. Mas, ali, não era possível pela confusão reinante.
Foi por isso que colocou a cabeça fora do paneiro, para melhor apreciar o que estava acontecendo. Foi exatamente quando passava um cachorro vira-lata, que teve a infelicidade de cheirar o paneiro para examinar seu conteúdo e recebeu, no mesmo momento, uma bicada tão violenta que saiu ganindo e saltando de uma perna só.
O pato forçou um pouco mais e saiu do paneiro. Sacudiu as asas e ficou a olhar os acontecimentos. Três barracas adiante da que estava, uma mulher gorda preparava a massa para fazer pastéis em grande quantidade. O suor se avolumava na testa, e ela o retirava com o dedo em forma de gancho ".

Continua na próxima postagem...

Um ótimo final de semana a todos.
Grande abraço,



Clóvis de Guarajuba
ONG Ande & Limpe

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

- MIOLO DE PÃO - V -

























 
" O menino de rua quase desistiu de pedir de porta em porta qualquer coisa para matar a fome. Surpreendeu-se, depois de várias horas, quando alguém teve piedade e lhe repassou alguns pedaços de pão dormido. Pão tão ruim, que só a fome o obrigou a colocar alguns pedaços na boca, enquanto caminhava. Ao passar diante da velha igreja da Sé, uma leve aragem espalhava cheiro do pão pela 
redondeza, difícil odor só percebido 
 por poucos.
O menino caminhava sem destino certo,  devagar, segurando  o pão displicentemente, quando foi  surpreendido por uma violenta bicada que levou parte do pão. Pulou para trás e procurou verificar de onde vinha o ataque. 
O pato, que tinha engolido o que conquistara com valentia, preparava-se para o segundo ataque. O menino riu.
- Gosta de pão, danado!
Ao pensar que o bicho talvez estivesse também com fome, jogou um pedaço da casca. O pato cheirou a oferta e a desprezou. O menino retirou uma parte do miolo e fez uma pequena bola e jogou para o pato. Ele comeu, com sofreguidão.
- Gosta só de miolo? - perguntou o menino.
Ao ouvir a palavra mágica, Miolo de Pão sacudiu a traseira e grasnou, talvez lembrando-se de uma menina que costumava alimentá-lo enquanto alisava sua cabeça e suas asas. Depois de dar  todo o miolo de pão dormido para o animal, o menino foi embora 
assobiando, enquanto o pato o olhava agradecidamente, dando mais uma saraivada de sujeira na calçada de pedras.

O homem bebido, como se 
estivesse morto, nada viu. 
A única coisa que o ligava
ao mundo dos vivos era o 
ressonar alto, o que o levava, 
de espaço a espaço, a
entreabrir a boca, por onde 
passavam finos sopros, em 
forma de roncos. Ao cair da 
tarde, quando já chegavam 
alguns fiéis para a missa, ele 
despertou. Espreguiçou-se, 
olhou para o paneiro, levantou-se e disse:
- Vamos embora, imbecil!
Como o efeito da bebida já tinha passado, saiu andando firme e segurando o pato, sem notar que a boca do paneiro já estava aberta, por onde o pato tinha voltado a entrar, depois de comer miolo de pão. "



Continua na próxima postagem...

Bom final de semana aos meus amigos e visitantes. 
Abraço,



Clóvis de Guarajuba
ONG Ande & Limpe

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

- MIOLO DE PÃO - IV -



" Quase em frente ao Colégio do
Carmo, o peso do paneiro dizia
que era um patarrão. E começou
a pensar: " Não preciso de tanta
carne de pato em casa, o certo
seria a metade do animal, já que
é muito grande. Poderia vendê-lo
e, com o dinheiro, compraria no
supermercado o tanto de pato
que preciso ". E foi andando com
seus pensamentos. A cidade
estava em sua festa maior,
sentia-se nas feições das pessoas.
Os táxis chegavam e saiam lotados.
Teve um último pensamento: " Depois, não fica bem, eu fardado
carregando um pato pelas ruas da cidade "... Um homem bastante
bebido tentava retirar uma cédula de um pacote de notas.
- Quer vender o pato?
- Sim - disse o guarda.
Ajustaram o preço, e o homem da lei saiu andando com a consciência serena e o dinheiro no bolso.
O bêbado pegou o paneiro do pato e falou alto:
- A mulher é que vai gostar! Vamos lá, seu imbecil.
E saiu andando entre os romeiros com alguma dificuldade.
Quando pisou na calçada da igreja da Sé, o sol já ia muito alto e o calor respeitável. Uma suave música fez com que olhasse para dentro da igreja. De onde vinha som tão bonito? Não soube identificar. Olhou um pouco mais para dentro, e ficou parado por alguns instantes.
Uma paz suave dominou o bêbado. Ele não sabia que eram os dedos do padre Cláudio Barradas, fazendo o instrumento soltar os sons musicais de Mozart, acompanhado da voz do pastor.. E Mozart era tão celestial e suave, que o bebaça foi se encostando na parede da centenária igreja, lembrando-se de sua mãe nos Círios passados, quando acompanhava a procissão levado pela mão materna.. Ou a música ou o calor daquelas horas, ou as lembranças da véspera do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, foram amolecendo o
homem, que colocou o pato ao lado e foi se arriando na calçada.
O pato sentiu que alguma coisa estava acontecendo, não só pela suave e bela música, como porque o mundo deixou de balançar quando o paneiro foi colocado no chão morno. Por isso tratou de alargar a passagem das talas da boca do paneiro. E tantas fez, e empurrou tanto, que conseguiu primeiro passar a cabeça, e, só depois, conseguiu passar o corpo, sacudindo-se todo, ao sonhar com água corrente. Ficou do lado do tonto e do paneiro, amedrontado com aquele
mundo desconhecido ao ouvir os passos das pessoas e vendo o velho casario da igreja de Santo Alexandre, bem como a entrada do 
" Forte do Castelo ".


Continua na próxima postagem...

Um grande abraço a todos e obrigado pela visita. Bom final de semana.



Clóvis de Guarajuba
ONG Ande & Limpe

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

- MIOLO DE PÃO - III -


" Quando Neuzita chegou do colégio foi correndo ao quintal, mas não encontrou o Miolo de Pão. Inúteis ficaram as migalhas em suas mãos sujas de tinta de caneta.
O terreiro pareceu vazio.
- Pato é pra panela.
O pai foi sucinto demais.
Procurou atingir o cais de Cametá, correndo sem parar, porque soubera quem comprou o Miolo de Pão




" Ao avistar o cais, avistou também o barco " Rodrigues Alves ", já fazendo a curva, no meio do rio, à procura da cidade de Belém. Nunca soube se o seu coração queria parar ou pular de dentro do peito. Sentou-se na calçada e ficou a olhar a embarcação, navegando a toda força, cheia de gente, a dizer adeus aos que ficavam. Ao desembarcar no Porto do Sal, além da pasta de serviço, o vendedor-pracista tinha diversas e variadas amostras de tecidos e de plásticos
para acomodar na saída do barco. Tropeçando entre os romeiros com tantos pacotes, descuidou-se do Miolo de Pão, que ficou bastante atrás. Ao voltar-se para apanhar o pato, ele não estava mais ali. Alguém o levara.. Quis abrir a boca para gritar, mas como pisaram em alguns de seus caixotes de amostras, o cometa resolveu continuar a descida, quase espremido, amargando a derrota.
O ladrão já ia muito longe, levando o pato dentro do paneiro, tal qual viera da casa de Edgar. Não satisfeito pela proeza, logo adiante subtraiu uma carteira de outro passageiro, e mais depressa andou. Mas um guarda o flagrou, no segundo roubo.
- Alto lá, bandido!
- Não fiz nada - disse o ladrão, como sempre dizem todos os ladrões.
- Eu vi você bater a carteira do homem.
Estava preso, sentiu o ladrão. Amoleceu.
- Estava com fome, seu guarda...
O guarda tinha cara de mau. Ouvia tudo parado. As pessoas continuavam a passar, porém não prestavam atenção ao fato. O guarda lembrou-se de que era véspera do Círio, e não tinha deixado em casa o pato para o tucupi.
- Vamos dividir, amigo, eu fico com a carteira e dou o pato - propôs o ladrão.
O guarda olhou para um lado e para o outro, como não tivesse ninguém olhando, aceitou.
- Tudo bem, mas desapareça da minha área!
E, ao assim dizer, segurou o paneiro* com o pato. ".


* Paneiro: cesto feito de fibra vegetal, muito comum para embalagem de quase tudo, na região.

Um ótimo finl de semana a todos.
Até a próxima sexta-feira. Abraço,


Clóvis de Guarajuba
ONG Ande & Limpe

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

MIOLO DE PÃO - II -





Depois de várias considerações, certo dia, ao brincar com as formigas que procuravam seguir caminho impedidas pela menina, ela pensou:
- É.
E gritou:
- Miolo de Pão!
Como Miolo de Pão já tinha surrado duas galinhas, diante da crista do galo, que ficou mais vermelha ainda; pisado na porca deitada, que grunhiu simplesmente, empurrado um peru, que só fez glu-glu, foi correndo buscar o que mais gostava na vida. A partir daí, passou a atender realmente por "Miolo de Pão". Quando o pato era muito pequeno, Neuzita apanhara uma bacia grande de alumínio amassada e despejara água até as bordas.
Colocara o valente pato dentro, e ficara muito impressionada porque ele nadava tão bem.  E pensara: " Calcule se ele tivesse professor de natação! "
Hóspede da pensão de dona Liberata, o vendedor pracista p erguntou onde compraria um pato grande e gordo para levar para casa, porque no dia seguinte era véspera do Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Como passar um Círio sem comer pato no tucupi? Panelões e panelões de tucupi iam ferver na cidade, com jambu e camarão e o imperdível pato.
Solícita e amiga do bem servir a seus hóspedes, dona Liberata indicou a casa do Edgar, onde tinham os melhores patos da cidade de Cametá.
Depois de discutir o preço, Edgar levou o vendedor até o quintal e mostrou as suas criações.
- Aquele ali ! - apontou - Que pato bonito e grande !
- Menos ele - disse Edgar.
- Por que? Vai comer você mesmo?
- Não. É cria da casa.
- Dobro o preço!
Edgar pensou mais de uma vez, fez contas nos dedos e, por fim, disse:
- Não posso vender.
- Além de dobrar o preço, ainda dou o dinheiro da branquinha por fora.
- Vou ouvir minha mulher.
O que se passou lá dentro ninguém soube além dos dois. Longa conversa, a princípio baixa. O vendedor- pracista só ouviu a última frase da Maria das Dores para Edgar:
- Você decide ".


Continua na próxima postagem...

Um abraço com desejo de que tenham todos excelente final de semana.



Clóvis de Guarajuba
ONG Ande&Limpe
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sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

- MIOLO DE PÃO - I -


                                                  Parte da capa da obra


Nasceu amarelo como ouro, e melhor sorte não teve, segundo alguns conhecedores, porque a mãe não fez a gritaria que a galinha faz quando, ao expelir o ovo, anuncia o acontecimento como se fosse a maior coisa da vida. Não veio só a este mundo. Com ele vieram seis outros irmãos que, ao crescerem, tomaram destinos ignorados.
Irmãos de raça tinha muitos pelo quintal, misturados entre as outras criações do Edgar, pai da Neuzita e marido da Maria das Dores.
Maior encanto para Neuzita não havia senão aquele minúsculo ser vivo, de irresistível atração pela água. Acompanhou o crescimento da criação, desde os tempos em que o colocava nas mãos, com cuidado para não cair das alturas, quando era amarelo como ouro, até atingir quatro quilos e meio, quando já se transformara naquilo  que Neuzita chamava:
- Terror do terreiro, meu valente pato.
Desde muito cedo Neuzita procurava ensinar artes ao pato:  
enrolava nas mãos miolo de pão e chamava o pato, que vinha dócil,

amigo e lépido. Com o pequeno bico retirava a comida da mão da menina.
Neuzita abria a cancela do quintal e gritava:
- É miolo de pão!
Estivesse onde estivesse, o pato largava tudo o que fazia, e vinha rápido buscar o que mais amava na vida: miolo de pão.
Quando era muito pequeno, Neuzita deixava primeiro o pato cheirar a massa do trigo, só depois colocava a migalha na palma da mão para ele comer.
Assim, pensava Neuzita, ensinava-o a conhecer o pão.
Como o tratava com muita atenção, Edgar dissera que o bicho ia crescer molenga demais, alvo de qualquer gavião que descesse das alturas, com sua visão de cem metros de distância.
Para evitar tal comportamento futuro, Neuzita usou de muitos truques e artimanhas. Uma delas foi despertar a atenção das outras criações, inclusive do galo brigão, e jogar entre eles sua comida preferida. Levantavam poeira do chão na disputa. Por tudo isso, o pai, ao ouvir a menina gritar " Terror do terreiro, meu valente pato ", aconselhou:
- Se fosse você, chamava o seu amigo de Miolo de Pão ".


Continua na próxima postagem...

Desejo um excelente final de semana aos meus amigos e visitantes.
Até a próxima sexta-feira.


Clóvis de Guarajuba
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